domingo, 11 de dezembro de 2022

Em caso de inadimplemento do devedor na alienação fiduciária de bens imóveis, a resolução do contrato não se dará na forma do Código de Defesa do Consumidor, mas sim de acordo a Lei 9.514/97

 

Em que consiste a alienação fiduciária?

“A alienação fiduciária em garantia é um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. São Paulo: Método, 2012, p. 565).

 

Regramento

O Código Civil de 2002 trata de forma genérica sobre a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368-B. Existem, no entanto, leis específicas que também regem o tema:

• alienação fiduciária envolvendo bens imóveis: Lei nº 9.514/97;

• alienação fiduciária de bens móveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais: Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei nº 911/69. É o caso, por exemplo, de um automóvel comprado por meio de financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária.

Nas hipóteses em que houver legislação específica, as regras do CC-2002 aplicam-se apenas de forma subsidiária:

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.

 

Resumindo:

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS fungíveis e infungíveis quando o credor fiduciário for

instituição financeira

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS infungíveis quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica

(sem ser banco)

Alienação fiduciária de

bens IMÓVEIS

Lei nº 4.728/65

Decreto-Lei nº 911/69

Código Civil de 2002

(arts. 1.361 a 1.368-A)

Lei nº 9.514/97

 

Alienação fiduciária de bem imóvel

Na alienação fiduciária de bem imóvel, alguém (fiduciante) toma dinheiro emprestado de outrem (fiduciário) e, como garantia de que irá pagar a dívida, transfere a propriedade resolúvel de um bem imóvel para o credor, ficando este obrigado a devolver ao devedor o bem que lhe foi alienado quando houver o adimplemento integral do débito.

Veja agora o conceito dado pela Lei nº 9.514/97:

Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João celebrou contrato de compra e venda de uma casa, com cláusula de alienação fiduciária em garantia.

O ajuste previa o pagamento em 120 prestações mensais.

Vale ressaltar que o referido foi devidamente registrado no cartório do registro de imóveis.

 

Inadimplemento

Após 60 prestações pagas, o mutuário/fiduciante tornou-se inadimplente em razão de dificuldades financeiras.

Havendo mora por parte do mutuário, o credor deverá fazer a notificação extrajudicial (“intimação”) do devedor de que este se encontra em débito, comprovando, assim, a mora.

Se, passados 15 dias da intimação, o fiduciante não pagar a dívida (purgar a mora), o art. 26 da Lei nº 9.514/97 afirma que ocorre a consolidação da propriedade em nome do fiduciário:

Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

(...)

 

Para que serve essa intimação?

O devedor é notificado para ter a possibilidade de purgar a mora, no prazo de 15 dias, mediante o pagamento das prestações vencidas e não pagas. Veja o que diz o § 1º do art. 26:

Art. 26 (...)

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

 

Se o devedor purgar a mora

Se o devedor purgar a mora, o contrato de alienação fiduciária se convalescerá (§ 5º do art. 26).

O oficial do Registro de Imóveis, nos três dias seguintes à purgação da mora, entregará ao fiduciário (banco) as importâncias recebidas, deduzidas as despesas de cobrança e de intimação.

 

Se o devedor não purgar a mora

Se passarem os 15 dias sem que o devedor purgue a mora, o oficial do Registro de Imóveis irá certificar esse fato e promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário (§ 7º do art. 26). Em outras palavras, o fiduciário (credor) torna-se o proprietário pleno.

Vale ressaltar que, antes de fazer a consolidação da propriedade, o registrador deverá exigir do fiduciário o pagamento do imposto de transmissão inter vivos (ITBI) e, se for o caso, do laudêmio.

Após a consolidação da propriedade, a Lei impõe ao fiduciário a obrigação de tentar alienar o imóvel por meio de leilão público:

Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.

(...)

 

Vendido o imóvel no leilão, o credor utiliza o valor obtido para pagar a dívida e entrega ao devedor eventual quantia que sobrar:

Art. 27 (...)

§ 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.

 

Voltando ao exemplo hipotético:

João foi notificado, mas não purgou a mora. Em vez disso, ele João ajuizou ação de resolução do contrato contra a incorporadora alegando que não tinha mais condições de continuar pagando as parcelas restantes.

Na ação, o autor pediu a dissolução do vínculo obrigacional, afirmando que entregaria o imóvel e que, como consequência, queria receber de volta 90% das prestações pagas. Afirmou que a vendedora poderia reter 10% dos valores já recebidos a título de despesas que eventualmente tenha sido, nos termos do art. 53 do CDC:

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

 

Além disso, sustentou a aplicabilidade da Súmula 543 do STJ:

Súmula 543-STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

 

A alienante alegou que:

a) a resolução do referido contrato de compra e venda de imóvel com financiamento imobiliário e pacto adjeto de alienação fiduciária deveria prevalecer a Lei nº 9.514/97 (Lei da Alienação Fiduciária de Bens Imóveis), diploma especial que prevalece em relação ao Código de Defesa do Consumidor;

b) o art. 27 da Lei nº 9.514/97 afirma que, em caso de inadimplemento do adquirente, deve-se realizar leilão extrajudicial;

c) somente após realizar o leilão extrajudicial é que poderia devolver ao adquirente eventuais diferenças.

Em suma, tendo havido inadimplemento por parte do comprador, é possível o desfazimento do contrato, no entanto, a devolução dos valores já pagos não se dará na forma do art. 53 do CDC, mas sim de acordo com o procedimento estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.

 

O argumento da alienante está correto?

SIM.

O Código de Defesa do Consumidor não estabeleceu um procedimento específico para a retomada do bem pelo credor fiduciário, tampouco inviabilizou que o adquirente (devedor fiduciário) pudesse desistir do ajuste ou promover a resilição do contrato. O que o CDC fez foi apenas dizer que é nula a cláusulas que estabeleça a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado (art. 53).

Por outro lado, a Lei nº 9.514/97 delineou todo o procedimento que deve ser realizado, principalmente pelo credor fiduciário, para a resolução do contrato garantido por alienação fiduciária - por inadimplemento do devedor - ressalvando ao adquirente o direito de ser devidamente constituído em mora, realizar a purgação da mora, ser notificado dos leilões e, especificamente, após realizada a venda do bem, receber do credor, se existente, a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzido o quantum da dívida e as despesas e encargos.

Isso significa que existe, na verdade, uma convergência entre o disposto no art. 53 do CDC e os ditames da Lei nº 9.514/97, considerando que, nos dois diplomas o legislador procurou evitar o enriquecimento indevido do credor fiduciário, seja ao considerar nula a cláusula contratual que estabeleça a retomada do bem e a perda da integralidade dos valores, seja por prever o procedimento a ser tomado, em caso de inadimplemento e as consequências jurídicas que a venda, em segundo leilão, por valor igual ou superior à dívida ou por lance inferior impõe, tanto ao credor como ao devedor fiduciário.

Desse modo, o procedimento especial da Lei nº 9.514/97 não colide com os princípios trazidos no art. 53 do CDC (1990), porquanto, além de se tratar de Lei posterior e específica na regulamentação da matéria, o § 4º, do art. 27, da Lei nº 9.514/97, expressamente prevê a transferência ao devedor dos valores que, advindos do leilão do bem imóvel, vierem a exceder (sobejar) o montante da dívida, não havendo se falar, portanto, em perda de todas as prestações adimplidas em favor do credor fiduciário.

Assim, se cumpridos os requisitos legais, deve-se aplicar o procedimento da Lei nº 9.514/97 (e não a regra do art. 53 do CDC). E quais são esses requisitos legais?

1)      o registro do contrato no cartório de registro de imóveis;

2)      o inadimplemento do devedor; e

3)      a constituição em mora.

 

Tese fixada

Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.891.498-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado 26/10/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1095) (Info 755).

 

Aos demais casos, em que não verificadas tais circunstâncias, não se aplica a tese vinculante acima exposta. Portanto, a tese proposta não abarca situações em que ausentes os três requisitos.

Assim, se inexistente o inadimplemento (falta de pagamento) ou, acaso existente, não houver o credor constituído em mora o devedor fiduciário, a solução do contrato não seguirá pelo ditame especial da Lei nº 9.514/97, podendo essa resolução ocorrer segundo as regras do Código Civil (arts. 472 e seguintes) ou do CDC (art. 53), se aplicável, dependendo das características das partes por ocasião da contratação.

Menciona-se o Código Civil porque nem todos os contratos de compra e venda imobiliária formados com pacto adjeto de alienação fiduciária são regidos pelo CDC.

 

 


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