sábado, 12 de novembro de 2022

Em partida de futebol, se houver tumulto causado por artefatos explosivos jogados contra a torcida visitante, o time mandante deve responder pelos danos causados aos torcedores

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Lucas foi assistir ao jogo de futebol entre o São Paulo e o Corinthians, no estádio do Morumbi, válido pelo Campeonato Paulista de Futebol.

A diretoria do São Paulo determinou que a torcida do Corinthians teria direito a apenas 10% dos ingressos.

Lucas, corintiano, ficou no setor do estádio reservado para os torcedores do clube.

Após o fim da partida, Lucas e todos os corintianos foram obrigados a permanecer na arquibancada por orientação da Polícia Militar considerando que a torcida do São Paulo estava em maior número e era melhor aguardar que saíssem das imediações do estádio.

A saída dos corintianos foi liberada por volta das 19h e, após alguns minutos, alguém que estava no estacionamento do clube jogou um artefato explosivo em direção à torcida, gerando tumulto.

Os policiais acharam que os corintianos que tinham jogado o artefato e, por isso, atiraram algumas bombas de efeito moral, aumentando ainda mais o tumulto.

Lucas, que ficou feriado no episódio, ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra o São Paulo Futebol Clube e contra a Federação Paulista de Futebol.

O juiz julgou os pedidos improcedentes, sob o argumento de que não foi possível concluir a autoria nem a origem do arremesso do artefato explosivo.

Lucas recorreu e o Tribunal de Justiça deu provimento à apelação, pois reconheceu a responsabilidade objetiva dos réus, por acidente de consumo. Condenou os requeridos ao pagamento de danos morais no valor de R$ 20 mil, além de danos materiais.

Tanto o São Paulo como a Federação Paulista interpuseram recurso especial.

 

A condenação foi mantida? O São Paulo Futebol Clube (time mandante) e a Federação Paulista de Futebol possuem responsabilidade civil neste caso?

SIM.

 

Dever de garantir a segurança dos torcedores mesmo após a partida

O art. 13 da Lei nº 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor) determina que se deve garantir a segurança do torcedor nos locais onde são realizados os jogos. Essa proteção deve ocorrer antes, durante e depois das partidas:

Art. 13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.

 

Esse dever deve ser prioritariamente garantido pelo time mandante do jogo

O clube mandante é quem tem o dever de promover a segurança dos torcedores, organizando a logística no entorno do estádio, de modo a proporcionar a entrada e a saída de torcedores com eficiência e segurança:

Art. 14. Sem prejuízo do disposto nos arts. 12 a 14 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, que deverão:

I – solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos esportivos;

II - informar imediatamente após a decisão acerca da realização da partida, dentre outros, aos órgãos públicos de segurança, transporte e higiene, os dados necessários à segurança da partida, especialmente:

a) o local;

b) o horário de abertura do estádio;

c) a capacidade de público do estádio; e

d) a expectativa de público;

III - colocar à disposição do torcedor orientadores e serviço de atendimento para que aquele encaminhe suas reclamações no momento da partida, em local:

a) amplamente divulgado e de fácil acesso; e

b) situado no estádio.

 

Vale ressaltar, contudo, que as entidades responsáveis pela organização da competição possuem responsabilidade solidária

A Federação Paulista de Futebol – por ser organizadora do Campeonato Paulista – também possui responsabilidade solidária, por força do art. 19 do Estatuto:

Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo.

 

Falha na prestação do serviço

Como forma de concretizar a obrigação de garantir a segurança dos partícipes do evento esportivo, o art. 17 do Estatuto do Torcedor institui o dever de criação e implementação de planos de ação relativos à segurança, transporte e contingências possíveis de se verificarem nesses eventos:

Art. 17. É direito do torcedor a implementação de planos de ação referentes a segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização de eventos esportivos.

 

A falha na segurança envolvendo a realização de uma partida de futebol corresponde, portanto, a uma falha/defeito na prestação do serviço.

 

Os danos causados aos torcedores são regidos pelo CDC

O Estatuto do Torcedor equiparou as entidades desportivas à figura do fornecedor do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 3º Para todos os efeitos legais, equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo.

 

Uma vez estabelecida a relação equiparada à de consumo, verifica-se a responsabilidade objetiva e solidária, nos termos do art. 14 do Estatuto do Torcedor, das entidades organizadoras, com os clubes e seus dirigentes, pelos danos que decorram de falhas de segurança nos estádios.

As entidades responsáveis pela organização respondem, portanto, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos advindos da realização da partida:

Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo.

 

Assim, para atrair a responsabilidade da agremiação mandante do jogo, é suficiente a comprovação do dano, da falha de segurança e do nexo de causalidade.

 

Responsabilidade objetiva

Não há dúvidas, portanto, de que a teoria de responsabilização no caso concreto é de ordem objetiva, ligada ao fato e ao risco da atividade e desprendida da prova da culpa (teoria subjetiva).

Por outro lado, a legislação brasileira citada não adota a teoria do risco integral, admitindo, portanto, a isenção da responsabilidade, caso comprovada a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro ou a ausência de dano.

 

Não há causa excludente de responsabilidade

Como a existência do dano ao torcedor é incontroversa, resta verificar a ocorrência do fato do serviço (falha na segurança) e a eventual quebra do nexo de causalidade, pela culpa exclusiva de terceiro.

Verifica-se que o dever de garantir a segurança do torcedor não se limita a convocar a força policial ao estádio ao longo da partida, mas também em um sem número de medidas e providências contidas no plano de ação previsto no art. 17 da Lei nº 10.671/2003.

No caso, o plano de ação, se houve, foi manifestamente falho, pois, conforme narrado pelas instâncias ordinárias, os torcedores do time visitante ficaram reclusos por quase uma hora, numa área pequena, protegida por muros provisórios, sem conforto ou informações, o que já caracteriza tratamento incompatível com aquele exigido pela norma.

Além disso, a força policial presente não foi capaz de conter o tumulto causado pelo artefato e atuou de forma a gerar ainda mais confusão. Não se olvide que, nos termos do art. 13 da aludida lei de regência, o torcedor tem direito a segurança “antes, durante e após a realização das partidas”.

 

Responsabilidade abrange o entorno do estádio

O local do evento esportivo não se restringe ao estádio ou ginásio, mas abrange também o seu entorno. Por essa razão, o clube mandante deve promover a segurança dos torcedores na chegada do evento, organizando a logística no entorno do estádio, de modo a proporcionar a entrada e a saída de torcedores com celeridade e segurança.

Assim, o fato de a primeira bomba ter sido arremessada da parte externa do estádio não interfere no dever de indenizar, pois os danos ocorreram nas dependências da arena esportiva e o arremesso está inserido no contexto da partida de futebol e da rivalidade das torcidas, no âmbito, portanto, da atividade exercida pelo clube mandante, cujo risco é tutelado pela norma.

 

Em suma:

 

DOD Plus – julgado correlato

A entidade esportiva mandante do jogo responde pelos danos sofridos por torcedores, em decorrência de atos violentos provocados por membros de torcida rival.

STJ. 3ª Turma. REsp 1924527-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/06/2021 (Info 701).



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