sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Se o Ministério Público pediu a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, o juiz está autorizado a decretar a prisão?

 

Depois da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), ainda é possível que o juiz, de ofício, converta a prisão em flagrante em prisão preventiva?

NÃO. Antes da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), a jurisprudência entendia que o juiz, após receber o auto de prisão em flagrante, poderia, de ofício, converter a prisão em flagrante em prisão preventiva.

Ocorre que a Lei nº 13.964/2019 revogou os trechos do CPP que previam a possibilidade de decretação da prisão preventiva ex officio.

Em suma:

Após o advento da Lei nº 13.964/2019, não é mais possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva sem provocação por parte ou da autoridade policial, do querelante, do assistente, ou do Ministério Público, mesmo nas situações em que não ocorre audiência de custódia.

A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, § 2º, e do art. 311, ambos do CPP, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio requerimento das partes ou representação da autoridade policial.

Logo, não é mais possível, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação ‘ex officio’ do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade.

STJ. 3ª Seção. RHC 131.263, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 24/02/2021 (Info 686).

STF. 2ª Turma. HC 188888/MG, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 6/10/2020 (Info 994).

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João foi preso em flagrante.

Logo em seguida, ele foi levado para a audiência de custódia.

O Ministério Público pugnou pela concessão da liberdade provisória mediante a aplicação de cautelares diversas da prisão, dentre elas o recolhimento domiciliar.

Contudo, a juíza que presidia a audiência entendeu que estavam presentes os requisitos do art. 312 do CPP e decretou a prisão preventiva (medida extrema / cautelar máxima) de João.

A Defensoria Pública, presente na audiência, protestou afirmando que a magistrada agiu de ofício ao decretar a prisão preventiva, considerando que o MP pediu apenas medidas cautelares diversas da prisão. Para a Defensora, houve atuação de ofício, em contrariedade às mudanças trazidas pelo Pacote Anticrime.

A magistrada respondeu que não estava decidindo de ofício. “O Ministério Público requereu a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão. Logo, ele pediu a aplicação de medidas cautelares. Eu só estou decretando uma medida cautelar diversa daquela que o Parquet requereu. Desse modo, estou agindo mediante requerimento da acusação.”

 

A afirmação da magistrada está correta? Se o MP pediu a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, o juiz está autorizado a decretar a prisão?

Se o Ministério Público pediu a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, o juiz está autorizado a decretar a prisão sob o argumento de que se trata de uma espécie de medida cautelar?

5ª Turma: NÃO

6ª Turma: SIM

Se o requerimento do Ministério Público limita-se à aplicação de medidas cautelares ao preso em flagrante, é vedado ao juiz decretar a medida mais gravosa - prisão preventiva -, por configurar uma atuação de ofício.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 754.506-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 16/08/2022 (Info 746).

A determinação do magistrado pela cautelar máxima, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio.

STJ. 6ª Turma. RHC 145.225-RO, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

A reforma introduzida pela Lei nº 13.964/2019, preservando e valorizando as características essenciais da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, modificou a disciplina das medidas de natureza cautelar, especialmente as de caráter processual, estabelecendo um modelo mais coerente com as características do moderno processo penal.

O art. 310 e os demais dispositivos do CPP devem ser interpretados privilegiando o regime do sistema acusatório vigente em nosso país, nos termos da Constituição Federal, que outorgou ao Parquet a relevante função institucional de “promover, privativamente, a ação penal pública” (art. 129, I, CF/88).

Assim, a despeito da manifestação do Ministério Público em audiência de custódia, a prisão que venha a ser decretada por Magistrado, à revelia de um requerimento expresso nesse sentido, configura uma atuação de ofício em contrariedade ao que dispõe a nova regra processual penal.

Não se desconhece a existência do RHC 145.225-RO, precedente da 6ª Turma acerca do tema. Ocorre que, neste julgado, houve 2 votos divergentes, demonstrando não se tratar de tema pacífico.

Assim, tratando-se de pedido do Ministério Público limitado à aplicação de medidas cautelares ao preso em flagrante, é vedado ao juiz decretar a medida mais gravosa, a prisão preventiva, por configurar uma atuação de ofício.

Vale ressaltar que o fato de o Ministério Público, no julgamento do habeas corpus contra a decisão, ter se manifestado favoravelmente à manutenção da prisão preventiva, não tem o condão de suprir/sanar a ilegalidade da prisão decretada de ofício em primeiro grau, considerando que o habeas corpus é uma ação de manejo exclusivo da defesa em benefício do réu.

A decisão que decreta a prisão preventiva, desde que precedida da necessária e prévia provocação do Ministério Público, formalmente dirigida ao Poder Judiciário, mesmo que o magistrado decida pela cautelar pessoal máxima, por entender que apenas medidas alternativas seriam insuficientes para garantia da ordem pública, não deve ser considerada como de ofício.

Isso porque uma vez provocado pelo órgão ministerial a determinar uma medida que restrinja a liberdade do acusado em alguma medida, deve o juiz poder agir de acordo com o seu convencimento motivado e analisar qual medida cautelar pessoal melhor se adequa ao caso.

Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação. Entretanto, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa. Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações, ou de lhe transferir a escolha do teor de uma decisão judicial.

Saliente-se que esse é igualmente o posicionamento adotado quando o Ministério Público pugna pela absolvição do acusado em alegações finais ou memoriais e, mesmo assim, o magistrado não é obrigado a absolvê-lo, podendo agir de acordo com sua discricionariedade.

Dessa forma, a determinação do magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido atuar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição.

 



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