Dizer o Direito

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

A empresa aérea que disponibilizar a opção de resgate de passagens aéreas com pontos pela internet é obrigada a assegurar que o cancelamento ou reembolso destas seja solicitado pelo mesmo meio

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João adquiriu, pela internet, duas passagens aéreas, mediante a utilização de 10.000 pontos de milhas do programa da empresa aérea Latam, para viajar à Curitiba (PR).

Por questões pessoais, João precisou cancelar a viagem e solicitou, também pela internet, o reembolso das milhas, mas não obteve êxito.

A Latam informou que o reembolso de passagens adquiridas com pontos só poderia ser feito no aeroporto, ou por intermédio da central de vendas, por telefone, mas não pelo site.

Sem conseguir resolver a situação, João ajuizou ação contra a Latam para tentar reaver as milhas decorrente do cancelamento, além de pedir a condenação da companhia em danos morais.

A Latam contestou alegando que não existe previsão legal que a obrigue a disponibilizar esse tipo de atendimento pela internet. Afirmou que já oferece aos consumidores outros mecanismos gratuitos que possibilitam a alteração da viagem e solicitação de reembolsos.

 

Os argumentos da companhia aérea foram acolhidos pelo STJ?

NÃO. Vamos entender com calma.

 

Programas de fidelidade representam prestação de serviço regida pelo CDC

Os programas de fidelidade não dispõem de previsão normativa específica no ordenamento jurídico. Em outras palavras, não existe lei tratando de forma específica sobre esse tema.

Vale ressaltar, contudo, que, mesmo sem essa previsão legal específica, pode-se concluir que o serviço prestado pela companhia aérea de emissão ou resgate de passagens por meio de milhas configura uma reação de consumo, de forma que o adquirente da passagem deve ser considerado consumidor e a companhia aérea fornecedora, nos termos dos arts. 2º e 3º do CDC.

Após a pontuação obtida pelo aderente do programa, é a empresa área que emite as passagens. O gerenciamento dos bilhetes, tanto para a emissão, alteração ou cancelamento é realizado pela própria companhia. Embora o programa de fidelidade não seja ofertado aos seus clientes de maneira onerosa, não se dúvida que proporciona a lucratividade da empresa pela adesão dos consumidores ao programa.

 

Negativa da companhia de cancelar pela internet é prática abusiva

No caso, a conduta da empresa aérea revelou-se abusiva, nos termos do art. 39, V, do CDC:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

(...)

V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

 

A companhia aérea implementou a opção de resgate das passagens aéreas obtidas por milhas em sua plataforma digital. Ela não estava obrigada a fazer isso, mas fez.

A partir do momento em que implementou o resgate de passagens por pontos pela internet, ela criou, para si, a obrigação de também disponibilizar a opção de cancelamento pela internet.

A companhia inseriu no mercado prática facilitadora para o resgate de passagem aérea e, por essa razão, teria que também disponibilizar a funcionalidade para as hipóteses de cancelamento.

 

Desestímulo para o consumidor cancelar

A conduta da companhia, além de se revelar contraditória e desprovida de fundamento técnico ou mesmo econômico, como se poderia cogitar, impunha ônus excessivo ao consumidor, na medida em que este teria que se deslocar às lojas físicas da empresa (e apenas aquelas localizadas nos aeroportos) ou utilizar o call center, medidas indiscutivelmente menos efetivas quando comparadas ao meio eletrônico.

Disso se conclui que a conduta serviria mesmo como um desestímulo ao consumidor no caso do cancelamento da passagem adquirida pelo programa de fidelidade e, assim, reaver os pontos utilizados para a compra - situação que geraria, por outro lado, vantagem ao fornecedor.

A conduta abusiva da companhia, portanto, revela-se dissociada da boa-fé que deve reger todas as relações jurídicas privadas, e não apenas aquelas sob os influxos do CDC.

O abuso do direito se caracteriza sempre que identificada determinada ação pelo seu titular, que ultrapassa os limites do direito que lhe foi concedido e, nessa esteira, ofende o ordenamento, acarretando um resultado ilícito. O abuso ocorre sempre que, aparentemente usando de um direito regular, haja uma distorção, por um “desvio de finalidade”, de modo a prejudicar a outra parte interessada ou a terceiros.

 

Não se trata de ingerência desmotivada na atividade empresarial

O STJ disse que, ao obrigar a companhia aérea a oferecer o serviço de cancelamento pela internet, não está fazendo uma ingerência desmotivada na atividade empresarial. O que está é exigindo que a companhia tenha um comportamento coerente e que não cause danos ou inconvenientes aos consumidores.

Os direitos do consumidor e a livre iniciativa não são, em linha de princípio, excludentes, devendo, na verdade, ser conciliados, na busca de uma solução que atenda a ambos, num cenário em que os abusos não têm espaço.

 

Em suma:



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