quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Mandado de segurança não serve para questionar o parecer da comissão examinadora de heteroidentificação, que não aceitou a autodeclaração de cotista em concurso

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João inscreveu-se em concurso público e, para fins de cota, declarou-se como pardo.

Ele foi aprovado nas provas aplicadas e obteve a 14ª posição nas cotas reservadas para candidatos autodeclarados pretos ou pardos.

Foi então convocado para se submeter a um procedimento chamado de “aferição da condição autodeclarada”, a ser realizado por uma comissão especial.

Vale ressaltar que esse procedimento estava previsto no edital.

 

Primeira pergunta: isso é possível? O edital do concurso pode exigir que o candidato autodeclarado preto ou pardo se submeta a uma banca de heteroidentificação?

SIM.

É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.

STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (Info 868).

 

O critério da autodeclaração é, em princípio, válido. Isso porque deve-se respeitar as pessoas tal como elas se percebem.  Entretanto, é possível também que a Administração Pública adote um controle heterônomo, até mesmo para evitar abusos na autodeclaração.

Exemplos desse controle heterônomo: exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso; exigência de apresentação de fotos pelos candidatos; formação de comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração.

 

 

Voltando ao caso concreto:

João se submeteu à análise da comissão examinadora de heteroidentificação e, depois de alguns dias, resultado foi publicado no diário oficial: a banca indeferiu sua autodeclaração.

Segundo a análise da comissão o conjunto de características fenotípicas apresentadas por João não permitiram que ele fosse considerado pardo.

O candidato interpôs recurso administrativo instruído com fotografias e laudos emitidos por médicos dermatologistas, no entanto, mesmo assim, a decisão foi mantida.

Diante disso, João impetrou mandado de segurança contra o ato do presidente da comissão.

Sustentou ser descendente de pai e mãe pardos e que é cientificamente reconhecido como pardo, conforme análise de experts, que lhe aplicaram o protocolo de Fitzpatrick, bem como que possui caracteres físicos fenotipicamente pardos.

 

O instrumento processual escolhido pelo candidato foi correto?

NÃO.

É inadequado o manejo de mandado de segurança com vistas à defesa do direito de candidato em concurso público a continuar concorrendo às vagas reservadas às pessoas pretas ou pardas, quando a comissão examinadora de heteroidentificação não confirma a sua autodeclaração.

STJ. 1ª Turma. RMS 58.785-MS, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 23/08/2022 (Info 746).

 

Só caberia mandado de segurança, neste caso, se os fatos que alicerçam o direito do autor pudessem ser comprovados de plano e de forma incontestável, mediante a apresentação de prova documental trazida já com a petição inicial.

No caso, o candidato havia se declarado pardo quando da inscrição no certame. Todavia, de acordo com a análise dos membros da comissão designada para a pessoal conferência dessa informação, a condição de pardo do impetrante não restou provada. Houve a interposição de recurso administrativo, instruído com fotografias e laudos emitidos por médicos dermatologistas.

Nesse contexto, o mandado de segurança não se mostra cabível por duas razões:

1) o parecer emitido pela Comissão examinadora, quanto ao fenótipo do candidato, ostenta, em princípio, natureza de declaração oficial, sendo por isso dotada de fé pública. Logo, essa conclusão não pode ser infirmada senão mediante qualificada e robusta contraprova. Em outras palavras, é necessária dilação probatória. Ocorre que não cabe dilação probatória em mandado de segurança.

2) o impetrante, no mandado de segurança, afirma que a avaliação feita pela comissão examinadora foi “subjetiva” argumentando que outras pessoas com características fenotípicas semelhantes à sua tiveram chanceladas semelhantes autodeclarações. Realmente, uma avaliação fenotípica é subjetiva, não havendo, atualmente, parâmetros absolutos, objetivamente aferíveis ou numericamente mensuráveis para se ter certeza de que alguém é preto ou pardo. Ocorre que a existência dessa subjetividade só reforça que o tema não pode ser decidido por meio do especialíssimo rito do mandado de segurança.

 

Sem resolução do mérito

No caso concreto, a ação mandamental foi extinta por inadequação da via eleita, sem resolução do mérito. Com isso, o impetrante poderá, assim desejando, postular o direito que afirma possuir, mediante ajuizamento de ação comum (art. 19 da Lei nº 12.016/2009).



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