terça-feira, 15 de novembro de 2022

A exigência dos requisitos previstos em edital para nomeação em cargo público não pode ser afastada por legislação posterior mais benéfica ao candidato

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Em 2014, o Estado do Rio Grande do Sul abriu concurso público para o cargo de Assessor Administrativo – Especialidade: Gestão Pública.

Na época do edital, vigorava a Lei Estadual nº 8.166/1986, que exigia os seguintes requisitos para o cargo: bacharelado superior em qualquer área, acrescido de Curso de Especialização em Administração ou em Gestão Pública, com duração mínima de 360 horas, realizado por instituição de educação superior credenciada pelo MEC. Em outras palavras: bacharel em curso superior + especialização em administração ou gestão pública.

João se inscreveu e foi aprovado no concurso para esse cargo.

O concurso foi homologado em junho de 2015 e começaram a ser nomeados os primeiros colocados.

 

Em abril de 2018, o requisito de escolaridade do cargo mudou

Em abril de 2018, foi publicada nova lei, que alterou diversos cargos na administração pública estadual. Um dos cargos reestruturados foi justamente o de Assessor Administrativo – Especialidade: Gestão Pública (o que mencionei acima). Para esse cargo, os requisitos passaram a ser: graduação em geral suplementado por Curso de Especialização em Administração ou Gestão Pública, com duração mínima de 360 horas, realizado por instituição de educação superior credenciada pelo MEC.

Houve uma sutil, mas importante alteração:

• na época do edital, exigia-se diploma de bacharel + especialização;

• em abril de 2018, passou a ser exigido apenas diploma de graduação + especialização.

 

João não conseguiu tomar posse porque não é Bacharel

Em maio de 2018, João foi nomeado para o cargo.

Ele apresentou os documentos para posse e aí surgiu um problema: a formação acadêmica de João é de Tecnólogo em Gestão Pública, com especialização em gestão pública. Ocorre que o Tecnólogo não é considerado Bacharel.

 

Abrindo um parêntese: tecnólogo é graduado, mas não é bacharel

Os cursos de bacharelado duram, em média, 4 ou 5 anos e abrangem, em geral, as formações mais tradicionais: Administração, Ciências Contábeis, Ciências Econômicas, Direito. A pessoa que concluiu o bacharelado, recebe um diploma de bacharel.

Os cursos superiores tecnólogos geralmente possuem duração rápida (2 a 3 anos) e possuem um foco maior na prática profissional. Exemplos de cursos tecnólogos: Turismo, Gestão em Recursos Humanos, Marketing.

O tecnólogo possui diploma de graduação. Assim, ele pode participar de concursos públicos e tomar posse em cargos que exijam graduação.

Vale ressaltar, ainda, que o tecnólogo pode fazer cursos de pós-graduação (especialização).

Por outro lado, o tecnólogo não é considerado bacharel.

 

Voltando ao caso concreto:

Diante desse cenário, João impetrou mandado de segurança alegando interessante tese jurídica:

- realmente, tecnólogo não é bacharel;

- logo, eu não preenchia o requisito original do cargo conforme a Lei Estadual nº 8.166/1986;

- ocorre que, antes de eu tomar posse, a lei foi alterada e passou a ser permitido que o cargo seja ocupado por tecnólogo. Isso porque tecnólogo é considerado graduação (não é bacharel, mas é graduação);

- desse modo, no momento da posse, eu preenchia os requisitos do cargo;

- segundo a súmula 266 do STJ, os requisitos do cargo devem ser analisados no momento da posse (e não na inscrição do concurso):

Súmula 266-STJ: O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público.

 

O STJ concordou com os argumentos de João?

NÃO.

Conforme vimos acima, a administração pública estadual lançou edital para a abertura de concurso público destinado ao provimento de cargo que tinha os seus requisitos disciplinados por lei estadual, exigindo bacharelado superior, em qualquer curso de nível devidamente complementado com especialização em administração ou em gestão pública.

Contudo, sobreveio lei estadual que reestruturou a carreira, modificando tanto a nomenclatura deste cargo, quanto os seus requisitos mínimos, passando a exigir meramente uma graduação em geral, suplementada por Curso de Especialização em Administração ou Gestão Pública, com duração mínima de 360 horas, realizado por instituição de educação superior devidamente credenciada pelo Ministério da Educação (MEC).

Vejamos novamente a redação da Súmula 266:

Súmula 266-STJ: O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público.

 

Vale ressaltar, no entanto, que a ratio essendi da Súmula 266/STJ é no sentido de que os requisitos que foram exigidos no edital do certame para o exercício de determinado cargo público devem ser comprovados no momento da posse.

Desse modo, é como se a súmula falasse:

• os requisitos do cargo são aqueles exigidos no edital (que deve estar em consonância com a lei);

• no entanto, esses requisitos previstos no edital somente precisam ser comprovados no momento da posse (e não no momento do edital).

 

Os requisitos do cargo exigidos no edital do concurso - e que eram consentâneos com a legislação vigente à época da publicação do edital, não podem ser alterados posteriormente, mesmo que por lei, seja para prejudicar ou para beneficiar os candidatos

A Administração Pública, ao publicar o edital do concurso, baseando-se na lei à época vigente, para seleção de candidatos, anuncia a existência de vagas disponíveis, expõe os requisitos que devem ser cumpridos pelos candidatos - podendo estipular critérios de diferenciação entre os participantes, desde que previstos em lei, e cláusulas de barreira, para classificação ou para eliminação de candidatos -, criando expectativas a serem satisfeitas, em caso de aprovação, e descrevem as regras e os procedimentos que serão adotados durante o processo de seleção.

Assim, a entrada em vigor de nova legislação, em momento posterior ao edital do certame e à homologação do concurso, não pode ter aplicabilidade ao concurso público já realizado e homologado, seja para prejudicar, seja para beneficiar o candidato, em face da isonomia entre os participantes, só podendo a novel legislação ser aplicada aos concursos abertos após a sua vigência.

Em face da observância do princípio da vinculação ao edital do concurso e da isonomia entre os candidatos, não há como considerar preenchido, no caso, no momento da posse, o requisito da escolaridade - com o diploma de tecnólogo, e não o de bacharel -, ao arrepio das normas editalícias e legais vigentes na data do edital do concurso, que, ademais, fora homologado antes da vigência da lei estadual que reestruturou a carreira.

 

Em suma:

A exigência dos requisitos previstos em edital para nomeação em cargo público não pode ser afastada por legislação posterior mais benéfica ao candidato.

STJ. 2ª Turma. AgInt no RMS 61.658-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 10/05/2022 (Info 748).



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