terça-feira, 29 de novembro de 2022

É lícito ao advogado firmar acordo de colaboração premiada contra seu cliente?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Antônio, advogado, procurou o Ministério Público e avisou que tinha informações e provas a respeito de uma organização criminosa que praticou inúmeros delitos. Afirmou, contudo, que somente entregaria esses elementos se fosse feito um acordo de colaboração premiada e se ele obtivesse isenção penal total pelos fatos praticados.

O acordo foi celebrado e Antônio prestou as seguintes declarações:

- a empresa Alfa Ltda entrou em recuperação judicial;

- ele foi, então, contratado para ser o advogado da empresa no processo;

- em conjunto com outras diversas pessoas, ele praticou diversos crimes falimentares e de lavagem de dinheiro;

- o objetivo seria desviar todo o dinheiro da empresa sem pagar os credores.

 

Além de prestar essas declarações, Antônio entregou ao Ministério Público documentos e gravações que ele havia obtido em razão de sua atuação como advogado neste processo.

Com base no termo de colaboração premiada e nos elementos entregues por Antônio, o Ministério Público instaurou um Procedimento Investigatório Criminal (PIC).

Ao final deste PIC, o Ministério Público ofereceu denúncia contra todos os envolvidos.

Um dos denunciados impetrou habeas corpus alegando a nulidade da colaboração premiada com o trancamento da ação penal. Afirmou que:

“Dr. Antônio, na condição de advogado contratado da empresa delatou pessoas que lhe confiaram informações. Na vigência de seu contrato de mandato, aproveitando-se da relação de confiança com seus clientes, de forma ardilosa e sorrateira, gravou clandestinamente seus clientes em reuniões jurídicas autenticadas pelo sigilo profissional”.

 

Assim, defendeu a ilicitude das provas pela violação do dever de sigilo profissional.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa? As provas obtidas são ilícitas?

SIM.

Nos termos da Lei nº 12.850/2013, o acordo de colaboração premiada é um meio de obtenção de provas, no qual o poder estatal compromete-se a conceder benefícios ao investigado/acusado sob condição de cooperar com a persecução penal, em especial, na colheita de provas contra os outros investigados/acusados.

Embora o acordo de colaboração premiada tenha representado uma inovação no sistema de Justiça criminal, ele precisa, obviamente, respeitar as normas constitucionais e legais. Nesse sentido, o STF decidiu que é possível a anulação e declaração de ineficácia probatória de acordos de colaboração premiada firmados em desrespeito às normas legais e constitucionais (STF. 2ª Turma. HC 142.205/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 1/10/2020).

O dever de sigilo profissional imposto ao advogado e as prerrogativas profissionais a ele asseguradas não têm em vista assegurar privilégios pessoais, mas sim os direitos dos cidadãos. Nessa direção, José Afonso da Silva afirma que a inviolabilidade da atividade do advogado, “na verdade, é uma proteção ao cliente que confia a ele documentos e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de reivindicação (...)” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 5ª ed. São Paulo: RT, 1989, p. 504).

Em paradigmático voto, no julgamento do RMS 67.105/SP, o Ministro Luis Felipe Salomão, citando Walter Ceneviva, lembra que “a advocacia, enquanto função essencial da Justiça, por definição constitucional, não sobrevive se não for a certeza de que o sigilo profissional representa a base sobre a qual se sustenta seu exercício”.

Logicamente, não há empecilho ao deferimento de medidas restritivas contra advogado investigado ou acusado da prática de crimes. Também não há ilicitude na conduta do advogado que apresenta em juízo documentos e provas de que dispõe em razão do exercício profissional para se defender de imputação de prática de crime feita por um cliente, em razão do princípio da ampla defesa e contraditório.

O que é inadmissível é a conduta do advogado que, sponte propria, independentemente de provocação e na vigência de mandato de procuração que lhe foi outorgado, grava clandestinamente suas comunicações com seus clientes com objetivo delatados, e entrega às autoridades investigativas documentos de que dispõe em razão da profissão, violando o dever de sigilo profissional (art. 34, VII, da Lei nº 8.906/94).

Aliás, no julgamento da Rcl 37.235/RO, o Ministro Gilmar Mendes, na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, enfatizou que o sigilo profissional do advogado é “premissa fundamental para exercício efetivo do direito de defesa e para a relação de confiança entre defensor técnico e cliente” (DJe de 27/5/2020).

Não é por outra razão que a Lei nº 14.365/2022, que alterou a Lei nº 8.904/94, passou a dispor no § 6º-I do art. 7º:

Art. 7º (...)

§ 6º-I. É vedado ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).

 

Embora esse dispositivo não estivesse em vigência na data dos fatos, sua dicção reforça a interpretação quanto à ilicitude da colaboração premiada contra quem era seu cliente.

 

Não havia justa causa para se afastar o dever de sigilo profissional

Na espécie, não se evidencia justa causa a excepcionar o dever de sigilo profissional. Conforme já mencionado, o advogado não estava sendo investigado ou acusado de prática delitiva, pois - como já mencionado - as investigações somente se iniciaram com a sua delatio criminis e provas entregues espontaneamente ao Ministério Público.

Também não se trata de hipótese de advogado acusado pelo próprio cliente da prática delitiva, que, necessitando defender-se, apresenta provas de sua inocência.

Vê-se, portanto, a inequívoca a ausência de causa justificadora para violação do dever de sigilo profissional do advogado, imposto no art. 34, VII, da Lei nº 8.904/94:

Art. 34. Constitui infração disciplinar:

(...)

VII - violar, sem justa causa, sigilo profissional;

 

É inadmissível que o Poder Judiciário dê guarida a atos negociais firmados em desrespeito à lei e em ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.

A conduta do advogado que em má-fé delata seu cliente, sem justa causa, ocasiona a desconfiança sistêmica na própria instituição, cuja indispensabilidade para administração da justiça é reconhecida no art. 133 da Constituição Federal.

Diante disso, inafastável a conclusão quanto à ilegalidade da conduta do advogado que trai a confiança nele depositada, utilizando-se de posição privilegiada, para delatar seus clientes e firmar acordo com o Ministério Público.

 

Em suma:

São ilícitas as provas obtidas em acordo de delação premiada firmado com advogado que, sem justa causa, entrega às autoridades investigativas documentos e gravações obtidas em virtude de mandato que lhe fora outorgado, violando o dever de sigilo profissional.

STJ. 5ª Turma. RHC 164.616-GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 27/09/2022 (Info 751).

 

 


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